ARTIGO: Como nasceu o projeto Chef Aprendiz?

imagem das mãos de uma pessoa, aparentemente um homem adulto, escrevendo à caneta em algumas folhas, são vists as mãos e parte dos braços com camisa de mangalonga azul clara. a mão direira escreve com a caneta e a esquerda está apoiada segurando os papéis.
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Por Beatriz Mansberger, fundadora do Chef Aprendiz

Vivemos tempos difíceis e fala-se muito ultimamente em saúde mental. A pandemia acabou por jogar luz em diversos abismos muitas vezes escondidos, despercebidos ou até mesmo desconhecidos por nós, tanto externamente como internamente. Nasci e cresci em São Paulo, essa megalópole fascinante, mas cheia de abismos e contradições.

Quando terminei o Ensino Médio, fui estudar Gestão de Políticas Públicas na USP com a esperança de impactar as injustiças que eu enxergava até então. Porém, depois de um ano e meio estudando, me vi paralisada. No lugar dos sonhos de trazer dias talvez um pouco melhores para as pessoas, me deparei com questões sociais imensas e complexas. Cada vez mais sentia vontade de ficar na cama e dormir até que toda aquela angústia passasse. Resolvi pedir ajuda, pois a “fase” estava se tornando meu cotidiano, e junto com o diagnóstico de depressão, tratamentos e acompanhamento profissional,  comecei a desenhar projetos porque sentia que precisava começar a colocar alguma coisa em movimento para me sentir viva e capaz novamente. Executando um projeto para crianças em uma organização em Paraisópolis, recebi um pedido da coordenação pedagógica para criar um dedicado exclusivamente para os jovens. 

A gastronomia sempre teve um lugar afetivo na minha vida. Minha avó era uma cozinheira de mão cheia e meu pai sempre cozinhava em casa. Quando, conversando com os jovens, eles me contaram que gostariam de participar de um projeto culinário, senti que podia ser uma forma de levar mais carinho e acolhimento para uma fase importante de passagem da adolescência para o mundo adulto com  um possível primeiro emprego. Foi então que o Chef Aprendiz nasceu, ainda em um formato piloto, no final de 2014. Meu marido, na época namorado, tinha cursado gastronomia e me ajudou a montar o currículo mais objetivo em termos de técnicas básicas e conversei com algumas pessoas que acreditava que poderiam me ajudar a pensar em formas de viabilizar o projeto. Decidi realizar um financiamento coletivo (crowdfunding), arrecadamos trinta e sete mil reais e tiramos do papel a primeira edição: Chef Aprendiz Paraisópolis.

Desde então, nunca mais paramos e, de maneira itinerante, a operação do projeto sempre acontece junto a uma ONG local que cede o espaço da cozinha para nossa equipe. Selecionamos cerca de 20 jovens com idade entre 17 e 24 anos para participar das dinâmicas ao longo de 6 meses com encontros que giram em torno de três eixos: (1) o meu mundo interno, que explora alfabetização emocional, autoconhecimento, meditação, apoio psicológico e dinâmicas psicoterapêuticas em grupo; (2) o mundo do trabalho, com temas tais como educação financeira, preparo para entrevistas de emprego, elaboração de CV, carreira e outros temas relacionados ao universo profissional; e (3) o mundo da cozinha que compõe a maior parte do currículo e conta com oficinas de técnicas básicas de cozinha, história da gastronomia, nutrição, receitas práticas, legislação do setor e conteúdos do Ensino Médio aplicados ao mundo real dentro deste intrigante laboratório que é a cozinha.

A competição final, etapa que celebra o encerramento das oficinas, coloca à prova o conhecimento adquirido durante a edição e manifesta de forma clara o tamanho do potencial dos jovens. Divididos em grupos, os participantes desenvolvem sozinhos um menu completo para a avaliação de jurados que, para além de feedbacks construtivos, oferecem vagas de emprego para os jovens em seus estabelecimentos.

Já realizamos este ciclo em nove comunidades diferentes (Paraisópolis, Campo Limpo, Glicério, Jd. Colombo, Valo Velho, Capão Redondo, Chuvisco, Liberdade e Vila Andrade) e formamos 136 jovens. 90% dos alunos que participaram do projeto receberam oportunidades de emprego no setor. Alguns jovens iniciaram carreira na gastronomia para bancar seus sonhos em outros caminhos, mas, daqueles que continuaram na área, são aproximadamente 58% que estão empregados ou em processo de entrevistas, apesar do cenário de emprego mais difícil com a pandemia. 

Em outubro de 2021 inauguramos a nossa sede: a Casa Chef Aprendiz. Escritório, sala de terapia para os jovens que já passaram pelo projeto, uma cozinha de produção e outra cozinha estúdio com bancadas para workshops compõem esse espaço multifuncional que permitirá novos passos de amadurecimento e rentabilização do projeto. A ideia é que no médio prazo consigamos nos tornar um negócio social sustentável que fortaleça o ecossistema gastronômico por meio de experiências e soluções inovadoras, para além de nossa atuação nas comunidades.

Acredito que as relações podem ser fortemente nutridas quando estamos presentes e compartilhamos uma refeição preparada com carinho.  Sinto que os abismos que enfrentamos podem se tornar menos amargos quando compartilhados. A cozinha tem esse lindo potencial de reunir pessoas e mostrar transformações concretas quando disponibilizados ingredientes e condições de temperatura e pressão adequadas. Fico muito feliz em perceber que hoje posso contar com um time e parceiros tão incríveis para promover experiências que preenchem a alma, tanto quanto alimentam. Por aqui, sigo me cuidando e ainda ousando sustentar a esperança como uma concepção de futuro, trabalhando diariamente para que mais jovens sintam-se empoderados e acolhidos através de nossas ações.

Sobre a autora: Beatriz Mansberger, indicada para a Forbes Under 30, é idealizadora e gestora do Chef Aprendiz, projeto voltado à inserção socioeconômica de jovens em situação de vulnerabilidade social, que usa a gastronomia como linguagem para o desenvolvimento. Beatriz foi bolsista da Fundação Carolina em seu mestrado em Relações Internacionais no IBEI, Barcelona, e bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo.