por Wagner Balera
A chegada de mais um Ano-Novo, ou Reveillon, palavra do francês que significa “despertar” ou “acordar”, em referência à nova etapa de vida que se inicia, é tempo de pensarmos sobre a Vida em sua plenitude: viver e deixar viver.
A reflexão nos faz lembrar que se comemora neste ano o cinquentenário do lançamento da música escrita por Linda e Paul McCartney, no título original em inglês Live and Let Die – viva e deixe morrer. A essência da letra fala sobre a mudança de perspectiva diante da vida e suas adversidades. A letra deixa claro que, “de início, você e eu dizíamos viva e deixe viver… Porém, agora, deveríamos dizer viva e deixe morrer”.
Gosto da música, assim como do filme, cujo roteiro foi magistralmente elaborado por Tom Mankiewicz. Como encarar essa assertiva: viva e deixe viver. Se tivermos o coração que opere com um livro aberto, e um dos primeiros versos da música aponta para esse modo de ser, prosseguiremos agindo e querendo viver e deixar que os outros vivam. Em consequência, você fará o teu trabalho muito bem-feito, tão perfeito que se confundirá com a beleza da criação, vale dizer, do mar, da terra, do sol e das constelações.
Ocorre que este mundo de constantes mudanças, por vezes nos impõe rendições. Nos rendemos ao consumismo; nos rendemos ao comodismo, ao amor-próprio e aos outros ismos, cuja síntese cabal é o egoísmo. E você e eu iremos chorar, porque nosso coração se fechou. Ai a tentação será a de dizermos, como Linda e Paul: viva e deixe morrer.
Continuemos com a alegoria, agora a do filme.
O que atrai, desgraçadamente, parte significativa das pessoas, a ponto de se transformar o ser num não ser e o mote fatal pode até chegar ao morra e deixe morrer, com a precipitação para o nada. O filme quer a morte da droga; do produtor e do traficante. Para tanto, podem ser necessários feitiços, revelações do tarô, e neste jogo de adivinhação, a única carta que deve existir é: a carta do amor.
A carta do amor – note bem, estou reescrevendo o roteiro do filme e reinterpretando a música, sem nenhuma licença poética, consoante a lição de Ziraldo: livre pensar é só pensar – nos proporá, de novo, viva e deixe viver. Você quer voltar às páginas do livro aberto que impõe pleno sentido à tua existência e à dos demais. Não seja contaminado pela cultural de morte.
Lute pela vida em todas as suas expressões. É o próprio Deus quem diz: eu vim para que todos tenham vida. E vida em plenitude. Vida em abundância. Seja essa a mensagem central para o ano de 2024 que se inicia dentro em breve. E, ainda segundo a expressão das escrituras: escolhe, pois, a vida.
Viva e deixe viver, exigindo dignidade para todos. A dignidade é sintetizada pela Constituição do Brasil que enuncia, como primeiro direito, a própria vida. Ademais, a dignidade exige os elementares direitos que compõe o mínimo existencial: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Vamos lá: começando de traz para a frente. Assistência aos desamparados. Viva e deixe viver aqueles milhares que estão em situação de rua, brutalmente perseguidos por serem pobres. E a moradia que lhes é devida, em termos constitucionais? Viva e deixe viver os que passam fome. Você também os encontra a cada esquina. São contados aos milhões num país que bate records a cada ano na produção de alimentos.
Viva e deixe viver as mulheres, vítimas de discriminação e violência em todos os quadrantes da sua existência, e a quem incumbe o bem da maternidade. Que sejam cercadas de todos os cuidados nesse evento apto a manter a continuidade cósmica.
Viva e deixe viver a infância, que não pode ser considerada viva sem cuidados essenciais aptos a dignificá-la. Cuidados que não podem se limitar à merenda, razão elementar que as leva à escola. Cuidados com a qualidade dos conteúdos ministrados na escola. Cuidados com o material escolar, que há de ser ferramenta de conhecimento e não fermento de discórdias descabidas.
Viva com saúde e que o sistema único de saúde seja dotado de recursos suficientes para atender aos desafios que crescerão cada vez mais, dos quais a pandemia recente foi alerta que não pode deixar de ter consequências estruturais e funcionais.
Viva com previdência social garantidora dos direitos e não sujeita a mudanças a cada governo que passa, com consequente frustração de legitimas expectativas.
Viva com trabalho, valor social essencial, mediante a busca incessante da meta constitucional do pleno emprego.
E que o viva e deixe viver seja estendido, como refrão totalizante, igualmente à flora, à fauna, que não podem morrer sem trágicas consequências para todos.
Confie na dimensão cósmica das existências. Em 2024 viva e deixe viver!
Sobre o autor: Wagner Balera é Coordenador do Núcleo de Estudos de Doutrina Social, Faculdade de Direito da PUC-SP.
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