Artigo: O Brasileirão deve parar?

imagem das mãos de uma pessoa, aparentemente um homem adulto, escrevendo à caneta em algumas folhas, são vists as mãos e parte dos braços com camisa de mangalonga azul clara. a mão direira escreve com a caneta e a esquerda está apoiada segurando os papéis.
imagem free-photos/pixabay

por Felipe Crisafulli
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O momento é de preocupação e consternação de toda a população brasileira, mas não só: também no exterior a imprensa vem dando bastante atenção à situação de calamidade pública que vive o Rio Grande do Sul, com centenas de mortos e desaparecidos, além de quase vinte Maracanãs lotados de pessoas afetadas pelas inundações que devastam o Estado.

Nesse contexto, ficaram os clubes gaúchos impossibilitados – física, emocional e tecnicamente – de disputar as competições nacionais e internacionais de que participam, seja porque os estádios dos clubes ficaram alagados, seja porque até mesmo o aeroporto da capital gaúcha ficou com água a 2,5 metros de altura – para além das incontáveis vias submersas nas mais variadas cidades do Estado.

Diante dessas dificuldades extremas, a CBF e a Conmebol se viram obrigadas a adiar as partidas dos clubes gaúchos em suas competições. Soluções foram propostas, tais como as equipes treinarem e jogarem noutros Estados, entretanto isso acabou não avançando, tanto pelas dificuldades locais (enchentes que impedem os deslocamentos das pessoas) quanto por encontrar resistência de Grêmio, Internacional e Juventude, por exemplo, diante do forte apelo emocional vivenciado pelos atletas, dirigentes, torcedores e afins, bem como dos prejuízos técnicos (ex.: atuar longe de suas torcidas).  ‍ 

Ainda, por não haver previsão – ou mesmo certeza – de quando a situação se normalizará minimamente na região, outra possibilidade que se pôs à mesa é a da paralisação dos campeonatos. Dezesseis clubes da Série A do Brasileirão masculino concordaram com o adiamento dos jogos das duas próximas rodadas do campeonato, e a CBF acatou a sugestão. As Séries B, C e D do Brasileirão masculino, a Copa do Brasil e o Campeonato Brasileiro feminino e o sub-20 seguem normalmente – exceção feita aos clubes gaúchos, que continuarão sem disputar quaisquer partidas até 27/05/2024.

Em que pese aos regulamentos esportivos não tratarem do assunto, pois apenas preveem que as tabelas de jogos (dias e horários) poderão ser alteradas por força maior, pandemia ou razões excepcionais (CBF) ou sempre que se considerar necessário (Conmebol), ao permitirem a remarcação das partidas para datas futuras, automaticamente se abre o flanco à paralisação, ainda que temporária, das competições. De todo modo, reitere-se, por ora há meros adiamentos pontuais de jogos, sem consenso quanto à suspensão dos torneios.  ‍ 

E não há consenso por diversos motivos. Se, de um lado, são inequívocos os prejuízos esportivos dos clubes gaúchos – impossibilitados de treinar e jogar, seus atletas perdem condicionamento físico, ritmo de jogo, tempo de bola –, de outro, há razões que justificariam as demais partidas, envolvendo apenas clubes das outras regiões do País, serem realizadas normalmente, tais quais a arrecadação de doações (alimentos, bebidas, roupas, etc.), o repasse de dinheiro auferido com bilheteria aos Municípios atingidos pelas chuvas, campanhas de ajuda aos flagelados nas camisas dos clubes e nas placas de publicidade dos estádios, etc. 

Além disso, em relação aos clubes em si, a suspensão das competições é economicamente bastante penosa, dado que seus orçamentos e prognósticos de ganhos anuais são feitos com base nas receitas esperadas, as quais têm datas razoavelmente estimadas de recebimento. Mais da metade do valor proveniente dos direitos de transmissão televisiva dos jogos, por exemplo, é quitada após o término do Brasileirão, consoante a colocação na competição e o número de partidas exibidas pela televisão. O mesmo vale para a Libertadores, que paga prêmios consoante os resultados e classificações no torneio, de modo que quanto mais tarde são realizados os jogos mais tarde, igualmente, são feitos tais repasses de dinheiro pela Conmebol.

A experiência internacional pode servir como paradigma
Tragédias socioambientais afetando o mundo do esporte não é novidade. Em fevereiro de 2023, após terremoto de alta magnitude na Turquia e Síria, que afetou mais de uma dezena de milhões de pessoas, o Hatayspor e o Gaziantep FK, da primeira divisão turca, e o Yeni Malatyaspor e o Adanaspor, da segunda divisão, tiveram seus pedidos acatados pela Federação local, e se retiraram da Liga e da Copa nacionais, com os seus confrontos tendo como placar a derrota por 3-0 (W.O.), ante a impossibilidade de seguirem disputando as competições.

Em contrapartida, foi assegurada a permanência dessas equipes nas suas respectivas divisões na temporada seguinte (a atual, 2023/2024), sem ficarem sujeitos ao rebaixamento naquele ano.
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Apesar de servir de precedente, talvez não seja necessário chegar-se a tanto no caso dos gaúchos. Ainda teremos, ao longo de 2024, algumas “datas-FIFA”, em que não ocorrerão confrontos entre clubes no Brasil e na América do Sul. Assim, é possível que haja espaço no calendário para a realização de jogos nesses períodos. Já a Copa América poderá ser um bom momento à marcação das partidas da Libertadores, visto que, apesar de no Brasil os campeonatos seguirem normalmente, a Conmebol não terá confrontos da Libertadores e da Sul-americana nessa época. ‍ 

O momento, sem dúvida, é de união e cooperação de todos, em prol da população do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, o esporte, independente da sua alegada função de servir de exemplo para os demais, pode, no mínimo, diante do seu impacto e repercussão sociais contribuir – e muito – com as vítimas dessa tragédia pluvial de proporções inimagináveis. ‍ 

A ver como tudo se desenrolará, mas, com um pouco de compaixão e empatia, o ser humano é capaz de tudo, inclusive de perceber que o futebol, enquanto coisa mais importante entre as menos importantes – no dizer de Arrigo Sacchi –, é capaz de ajudar tanto direta quanto indiretamente o povo gaúcho. Especialmente se a bola, neste momento, seguir rolando pelos gramados.

Sobre o autor: Felipe Crisafulli é advogado especializado em Direito Desportivo do Ambiel Advogados, membro da OAB/SP e do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). É professor de Direito Desportivo e doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal), com produção acadêmico-científica e experiência profissional no ramo da indústria do desporto e entretenimento.

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