Artigo: Seu cão não quer dominar você

imagem das mãos de uma pessoa, aparentemente um homem adulto, escrevendo à caneta em algumas folhas, são vists as mãos e parte dos braços com camisa de mangalonga azul clara. a mão direira escreve com a caneta e a esquerda está apoiada segurando os papéis.
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Por Camilli Chamone

Geneticista contesta a teoria da dominância canina e comenta questões históricas que podem levar a esta crença e a uma conduta equivocada de adestradores e tutores.

Você já deve ter ouvido falar que os cães precisam ser tratados sob rígidas regras, para aprenderem a se comportar. Que não podem andar a frente de pessoas; que não devem atravessar o batente da porta, antes dos seus tutores; que devem sair à rua portando enforcadores, enquanto marcham obedientemente ao lado de seus condutores; que a guia de condução deve ser curta e firme…

Aqueles que defendem esse tipo de filosofia educativa afirmam que os cachorros possuem o instinto inato de comandarem o seu grupo, seja ele formado de outros cães ou de pessoas. Portanto, ter o pulso forte na liderança da educação canina é importante.

Esse entendimento remonta à década de 1970, quando David Mech, etólogo (especializado no estudo de lupinos) e professor na Universidade de Minnesotta (EUA), teorizou que, em um grupo de lobos, sempre há aquele que está no topo da hierarquia de status social. Esse animal tem acesso prioritário à comida, às parceiras sexuais e a qualquer outro tipo de privilégio, que obtém por meio da sua força física, por intimidação e dominação. Devido a esse comportamento, os lobos dominantes foram apelidados de “alfa”, por Mech. Por outro lado, os lobos submissos ao lobo “alfa” foram apelidados de “ômega”. Essa teoria, sobre a organização social dos lupinos, ficou conhecida como a Teoria da Dominância ou a Teoria do Macho Alfa, sendo publicada no livro “The Wolf”, que se tornou muito popular àquela época.

Mas, onde entram os cães nessa história?

Em uma escala evolutiva, lobos e cachorros são animais muito próximos. Tão próximos, que é possível acasalar um lobo com uma cadela ou uma loba com um cão, que nascerão filhotes.

Justamente por essa proximidade genética, a Teoria da Dominância foi transposta para o universo canino, baseada no julgamento de que os cães se organizam socialmente através da força física (assim como seus parentes, os lobos); portanto não restam escolhas: ou se é o líder ou se é o liderado!

E o líder precisa mostrar o seu poder, a sua dominância. Por esse motivo, a imposição, através da força física, é tão frequente entre aqueles que defendem a Teoria da Dominância.

Acontece que, 35 anos após publicar o best-sellerThe Wolf”, David Mech veio a público para se retratar e dizer que estava equivocado acerca dessa teoria. Ele explicou que, na década de 1970, aquele era o entendimento que se podia ter, com os recursos que a ciência disponibilizava àquela época. Segundo sua explicação atual, lobos não se organizam socialmente através da força física e da dominação alheia! Eles formam famílias estáveis, com a presença de um macho, de uma fêmea e dos seus filhotes – e os pais lupinos provêm seus filhos enquanto for biologicamente necessário, até que eles formem suas próprias famílias.

A Teoria da Dominância – que nunca passou de uma (equivocada) teoria – caiu, então, por terra!

Porém, infelizmente, ninguém apareceu para desmenti-la, no universo daqueles que trabalham o comportamento canino. É por isso que, ainda hoje, no ano de 2023, há quem repita o claudicado discurso da dominância em cães.

Embora tenha sido muito honrado da parte de David Mech vir a público se desculpar e se justificar, colaborando, inclusive, para que os profissionais do comportamento canino reconduzissem suas condutas terapêuticas, as suas explicações foram realmente desnecessárias. A neurociência comportamental já havia desmentido a Teoria da Dominância em cães, usando a sua própria linguagem, através dos seus achados científicos.

Os avanços da neurociência do comportamento, nos 30 últimos anos, foram impressionantes. Muito se compreendeu sobre o funcionamento da mente dos cachorros e de outros animais. Um achado interessante foi a descoberta de que o cérebro de um cão adulto, de qualquer raça, tamanho ou localização geográfica, apresenta neurodesenvolvimento análogo ao de uma criança humana de 2-3 anos de idade. Nada mais do que isso!

A essa idade, mini humanos ainda são bastante egocêntricos, não sendo biologicamente capazes de entender emoções e necessidades alheias. Essa competência cognitiva, de compreender estados mentais de terceiros, é conhecida como Teoria da Mente – que, embora batizada por “teoria”, é um fato científico incontestável.

A Teoria da Mente começa a se desenvolver, em humanos, por volta dos 4 anos de idade. Outros primatas superiores, como gorilas e chimpanzés, também apresentam essa característica emocional, embora de forma mais rudimentar. Entretanto, cães não desenvolvem a Teoria da Mente!

Na prática, isso significa que, por mais esperto que um cachorro seja, ele só será capaz de sentir emoções primárias, como o medo, a tristeza, a raiva, a surpresa e a alegria.

É provável que alguns estranhem essa informação e discordem, garantindo que esses animais são “quase humanos” ou “dotados de inteligência superior”, porém, a ciência comprova que o cérebro dos cachorros não é evoluído a esse ponto.

Culpa, inveja, vingança ou empatia não são emoções que fazem parte do universo canino. E todos os comportamentos que os cães fazem, que nos lembram essas sensações, são apenas equivocadas interpretações humanas dos comportamentos caninos.

Dito isso: se os cachorros são animais, sob a ótica neurobiológica, tão rudimentares e pouco evoluídos, quando comparados aos humanos, não faz o menor sentido acreditar que eles tramam planos maquiavélicos para dominar a sociedade moderna! Isso soa, inclusive, bastante infantil à luz dos conhecimentos da neurociência – só sendo mesmo possível nos desenhos de Walt Disney.

Talvez o conteúdo desse texto cause estranhamento a muita gente. Talvez, até um sentimento negacionista. Mas, seu conteúdo trata-se do que a ciência diz sobre a mente dos cães. E ela não está aqui para massagear-nos o ego ou para acenar para a retórica de ninguém.

A ciência é um fato e é uma direção a ser seguida. E, sem dúvida alguma, fazer bom uso dela também poupa os cães de muitos sofrimentos desnecessários!

Sobre a autora: Camilli Chamone é geneticista, consultora em bem-estar e comportamento canino e criadora da metodologia neuro compatível de educação para cães no Brasil.

A sessão de artigos é publicada às segundas-feiras, com textos de colunistas convidados. Seu conteudo é de total responsabilidade dos autores e pode não refletir o posicionamento do site. Encontre mais artigos publicados neste link.